Mais CBD é necessariamente melhor? Conheça os efeitos em U invertido desse incrível canabinoide
Aprenda um pouco mais sobre o que está por trás da relação dose-resposta deste canabinoide que está cada vez mais famoso nas discussões médicas
Uma pergunta bastante recorrente com a qual nos deparamos é: qual a melhor dose de canabidiol (CBD) pro paciente? E a resposta é, invariável: depende.
Os canabinóides quase sempre exigem uma titulação individual de dose, que é característico destas substâncias, mas não exclusivo. A titulação é algo bastante realizado (e necessário) na neurologia e psiquiatria para que se consiga uma otimização entre efeito terapêutico e perfil de efeitos adversos.
Lembra daquela frase famosa do Paracelso? A diferença entre o remédio e o veneno é muitas vezes apenas a dose.
A diferença entre o remédio e o veneno é muitas vezes apenas a dose.
Um dos principais aspectos a se prestar atenção é qual a patologia que se pretende tratar. Há algumas patologias em cuja eficácia do CBD já é bastante conhecida, pelo menos anedoticamente. Pode-se citar sem sombra de dúvida epilepsias, ansiedade e sono.
Somente para falar desses 3 casos, há uma diferença bastante grande entre as doses utilizadas para cada caso. As epilepsias refratárias são sem sombra de dúvida as patologias em que se usam doses bastante altas. Estamos falando de algumas centenas de miligramas diariamente, dependendo bastante do peso do paciente, no caso de crianças e adolescentes. Em alguns casos, a dose ultrapassa 0,5 g de CBD total. As doses que provocam sono e reduzem ansiedade são pelo menos de 5 a 10 vezes menos.
Imagine que você seja um paciente que faz uso de CBD para dormir melhor. Você toma uma cápsula de 50 mg de noite, depois da janta. Será que tomar 500 mg vai lhe fazer dormir melhor? Não necessariamente. No mínimo, é um grande desperdício, mas pode inclusive haver perda de eficácia e até mudar o perfil de efeitos adversos (com a maior dose, aumentam as “off-targets”, veja na terceira parte do texto).
Dose em U invertido: adaptação do sistema endocanabinoide
Uma característica bem interessante dos canabinoides e que os torna diferente de grande parte dos medicamentos conhecidos, é que eles possuem um efeito dose-resposta em U invertido.
Normalmente, o que se espera de uma substância é que ela tenha uma dose onde se atinge seu efeito máximo. A partir dessa dose, não adianta aumentar a dose porque não se tem ganho terapêutico proporcional, é o que chamamos de “platô” (veja na figura abaixo e se quiser saber mais sobre farmacodinâmica, baixe esse pdf).
No entanto, a coisa não funciona bem assim com os canabinoides. Eles costumam fazer o que chamamos de “relação dose-resposta em U invertido”. Isso é comum de se observar e é algo inerente ao sistema endocanabinoide.
Esse gráfico abaixo é bastante didático. É um experimento em modelo animal de “ansiedade”. A parte de cima mostra uma medida de locomoção, enquanto a parte de baixo mostra uma medida de ansiedade. Quando mais alto o “entry ratio”, mostra que o animal está menos ansioso.
Interpretando o gráfico: Nas colunas, a primeira, que não está conectada por uma linha é o “V”, de veículo, ou grupo controle. Ele serve para comparação e entendermos o efeito do CBD. Nos pontos grudados por linha, temos as diferentes doses de CBD, em mg/kg, ou mg de CBD por cada kg de peso de animal. As doses vão de 2.5 a 20 mg/kg, como um rato adulto tem em média 300 g, estamos falando de aprox. 0.8 a 6.7 mg de CBD adminstrado para cada animal. Por conversão direta seguindo os guidelines de pesquisa, isso seria equivalente a uma faixa de cerca de 5 a 40 mg de CBD em um homem adulto.
Acho que só de olhar o gráfico, já dá pra perceber o formato em U invertido, ou seja, a dose mais baixa faz menos efeito, até uma dose intermediária que faz efeito máximo, e as doses sucessivas que vão se tornando gradativamente menos efetivas. Captou a moral da história? Interessante, não é?
O gráfico abaixo, de outro estudo mostra como esse efeito também é verdade em seres humanos. Esse dado abaixo é de um estudo de ansiedade em humanos por exposição social. Vejam que interessante novamente o perfil em U invertido do CBD. A dose de 100 mg praticamente não faz efeito, a dose de 300 mg tem um efeito máximo e com 900 mg de CBD perde-se o efeito novamente. Isso é figura de livro texto de tão claro!
E só para não deixar dúvida que isso é algo característico dos canabinoides em geral, não só do CBD, e não só na ansiedade, você pode checar outros exemplos de curva em U invertido, como efeito do THC na excreção urinária e do CBD na pressão arterial. Abaixo outras moléculas sintéticas que agem no sistema endocanainoides, com a curva dose-resposta característica em U invertido.
Curva em U invertido é assim: a dose mais baixa faz menos efeito, até uma dose intermediária que faz efeito máximo, e as doses sucessivas que vão se tornando gradativamente menos efetivas, até perderem totalmente o efeito terapêutico. Isso é típico dos canabinoides.
Quando se observa uma curva dose-resposta com platô, em geral isso acontece porque já se atingiu o efeito máximo daquele tecido biológico, ou daquela função orgânica. Falando rapidamente, o principal motivo é que os receptores onde a substância age estão totalmente ocupados, ou saturados. Pode haver outros motivos, mas pra esse momento, está ótimo compreender desta maneira. Isso quer dizer que já que não há mais receptores para interagir, aumentar a dose não vai gerar mais efeito.
Já com a curva em U invertido típica do sistema endocanabinoide, o que acontece é que o organismo se adapta à concentração de canabinoides e rapidamente reduz o efeito à medida em que se aumenta a dose. É um fenômeno conhecido como taquifilaxia ou dessensibilização. Assim, a mesma quantidade de receptores, acaba fazendo um efeito menor, por desacoplar o sistema de transdução de sinal, ou mesmo internalização do receptor. Assim, o canabinoide eventualmente se liga ao receptor, mas não faz efeito.
Esse é o mesmo efeito que acontece em usuários crônicos, ou quando se usa uma dose alta. Os receptores se adaptam e o efeito reduz ao longo do tempo. Na curva em U invertida o que acontece é que a dessensibilização acontece num espaço de tempo muito curto. Isso é inerente ao sistema endocanabinoide, que se adapta muito rápido mesmo, e é mais evidente quando se utiliza agonistas (“ativadores”) potentes do receptor.
Mecanismos diferentes para a mesma substância
O interessante do CBD é que ele possui diversos mecanismos de ação, o que garante um nível ainda mais alto de complexidade para a interpretação desses dados. A estimativa segundo o artigo abaixo (que é ótimo, diga-se de passagem) é de 65 potenciais mecanismos de ação para o CBD. Já imaginou?
O gráfico abaixo da uma idéia dos alvos possíveis de CBD, entre enzimas, receptores, íones e transportadores moleculares. É bastante coisa.
Só falando de receptores, temos receptores canabinoides como alvos principais, mas além disso receptores de glicina, receptores órfãos (GPR18 e GRP55), além de PPARy, serotoninérgico (5HT1A), nicotínico (nAChR) e opióides.
Mas espera aí, então onde age o CBD? Ótimo pergunta. A resposta: depende. Depende principalmente da concentração e o parâmetro que ajuda a entender isso é o EC50, a terceira coluna da tabela acima. Quanto menor o EC50, quer dizer que o CBD tem efeito naquele alvo em uma concentração menor. A interpretação disso é a seguinte: não existem alvos absolutos para uma determinada molécula, os alvos são sempre relativos. Há uma maior ou menor potência do CBD para um determinado alvo, e então, dependendo da concentração ele terá um efeito preferencial em um alvo ou outro. Exemplo: abaixo da concentração de 1uM, é muito mais fácil você observar um efeito do CBD sobre o receptor GRP55 do que sobre o receptor CB1 ou mesmo do serotoninérgico, que é outro receptor “famoso” associado a esta molécula.
Existem 65 potencia salvos descritos para o canabidiol. E a maioria deles não são receptores farmacológicos, mas sim enzimas e transportadores celulares.
Você sabia? Uma curiosidade, mas em concentrações consideradas atingíveis quando se administra um produto à base de CBD, é mais comum observar efeitos do CBD sobre enzimas do que sobre receptores. Então, a rigor, poderíamos dizer que o CBD tem muito mais efeito indireto por inibir captação do endocanabinoide anandamida (e assim aumentar seu nível endógeno) do que diretamente sobre o receptor CB1. Isso sem faar de diversas outras enzimas mais conhecidas (como citocromos P450) e outros alvos menos conhecidos como transporte de adenosina e colina. Molécula interessante, não é?
Por isso é que o efeito do CBD muda tanto ao longo da curva de concentração. Mas agora você já sabe: diferentes concentrações, diferentes efeitos. Lembra da curva em U invertido? Agora acho que você já consegue entendê-la melhor.
Comentei acima com o exemplo da ansiedade, mas esse efeito em U invertido pode acontecer em diversas funções fisiológicas. Abaixo vou mostrar um resultado muito legal interessante obtido em experimento de dor e inflamação.
No gráfico abaixo temos um experimento de dor utilizando estimulação mecânica no modelo de von Frey. Neste modelo o pesquisador “cutuca” a pata do roedor com uma espécie de agulha fininha, e se mede o limiar (threshold) até que o animal retire a pata. Veja na esquerda como o efeito do CBD é atingido na dose de 25 mg/kg e depois gradativamente vai reduzindo. Se conseguissemos extrair uma “área sob a curva” desse experimento, o efeito seria ainda mais nítido. A grosso modo, somando as barras dos tempos de 2h, 6h e 24h de avaliação, temos algo em torno de 7 pontos para o grupo controle, 8 pontos para o grupo de CBD 10 mg/kg, pelo menos 30 pontos para o grupo CBD 25 mg/kg, caindo para algo em torno de 26 e 25 pontos para as doses subsequentes.
Já no lado direito, do gráfico, temos o tratamento dos animais com um extrato padronizado rico em CBD. Percebam que diferença interessante, neste caso, o extrato 1) produz mais efeito na dose equivalente de CBD e 2) continua produzindo efeito proporcional às doses utilizadas. Ou seja, não temos mais a limitação da curva em U invertido dos canabinoides!
Isso tudo acontece por conta da mistura de vários compostos. São vários compostos, que interagem entre si e com múltiplos alvos, gerando uma resposta biológica que é mais complexa e eventualmente maior, como no exemplo mostrado.
Os gráficos abaixo mostram mais um efeito desse tipo, do mesmo estudo, comparando CBD isolado e extrato padronizado rico em CBD. Neste caso estamos falando de um efeito sonre mediador inflamatório (TNF alfa), vejam como está clara a curva em U invertido no gráfico da esquerda (do CBD puro) e o efeito diretamente proporcional à dose no gráfico à direita no extrato padronizado.
Fazendo um link com o que vimos lá em cima na ansiedade, temos um estudo bem interessante do laboratório do Prof Beat Lutz, mostrando que diferentes mecanismos contribuem para efeitos de canabinoides sobre a ansiedade. Em baixas doses temos efeitos GABAérgicos agindo, enquanto em altas doses os efeitos são mais de inibição glutamatérgica (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3473327/).
Do ponto de vista fisiológico, ou do observador externo que faz o experimento, a ativação de uma inibição (GABA) ou a inibição de uma excitação (GLU) são semelhantes, mas o caminho que leva até lá é diferente. Com os CBD, é assim que funciona, dependendo da dose temos efeitos ocorrendo por diferentes mecanismos. Contudo, mesmo assim ainda temos a saturação destes mecanismos, e observamos a curva em U. Com os extratos de Cannabis contendo diversos canabinoides, a complexidade é ainda maior, e mecanismos sinérgicos são ativados, mas sem que nenhum deles seja saturado por ativação excessiva. Ou seja, o efeito prático, é que conseguimos obter o melhor do sistema canabinoide, potencialmente sem que haja adaptação de curto ou longo prazo a estes mecanismos.
Pontos importantes para lembrar
- Diferentes patologias podem ser tratadas, com doses diferentes.
- Curva em U invertido: puro x extrato (clone 202). É a sinergia entre os mecanismos que chamamos de eEfeito Entourage.
- Diversos mecanismos de ação podem ser ativados pelo CBD dependendo da dose administrada.
O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!
Autor: Fabrício Pamplona é um dos professores do curso New Ways que começa, agora, dia 5/03 na sede do Rio de Janeiro.
Matéria retirada do site Perestroica e pode ser lida aqui.