Nota sobre a decisão do STJ em favor do plantio de maconha para uso medicinal para grupo de três pessoas: Autor Dr. Paulo Fleury👇
No dia 14 deste mês de junho de 2022, os cinco juízes da sexta turma do STJ votaram, de modo unânime, em favor do plantio da maconha para um grupo de três pacientes portadores de ansiedade, estresse pós traumático e epilepsia.
A decisão do tribunal reconhece que “o cultivo da cannabis por paciente com doença grave não pode ser considerado crime”.
Apesar de não obrigar aos tribunais inferiores, não sendo vinculante, essa decisão é histórica e deve modificar de fato o cenário no tocante ao plantio de maconha para uso pessoal no país.
O STJ é, justamente, a corte superior responsável pela uniformização da interpretação da lei nos diversos tribunais do país. Portanto, se essa decisão não for contestada, ela passará a orientar a interpretação da lei em todos os julgamentos e nas ações do judiciário e das polícias em geral, sobre este tema.
Essa decisão confirma que o caminho para o alargamento da aceitação ao uso e cultivo da erva no Brasil passa, neste momento, sobretudo pelas ações judiciais para uso medicinal, seja pessoalmente, em grupos ou em associações.
Não havia e ainda não há aqui qualquer possibilidade de uma mudança maior e decisiva no âmbito do governo, do parlamento ou do STF. Então, foi, e só podia ser, o ataque de formigas no judiciário que abriu o caminho até aqui. Nem no executivo, nem no legislativo, nem no STF e nem na imprensa se encontra forças suficientes para romper com o preconceito ainda dominante na nossa cultura sobre o uso da planta. Ao contrário.
Mas, desde o momento que a Anvisa reconheceu a possibilidade do uso medicinal do CBD e depois do THC, os limites institucionais, estritamente técnicos, já haviam se aberto o suficiente para se justificar o plantio e o uso terapêutico da erva no nosso país. Restava então conquistar na justiça este direito; E foi o que milhares de brasileiros e seus familiares buscaram fazer e continuam buscando.
E algumas centenas destas pessoas já tiveram decisões favoráveis e conquistaram seu direito de plantar e usar maconha livremente no Brasil, progressivamente, estabelecendo uma jurisprudência que, se consolida agora com a decisão do STJ.
É importante destacar que a justiça tem acolhido as demandas dos pacientes com os mais diversos diagnósticos, acatando e respeitando, corretamente nestes casos, a responsabilidade e a prescrição dos médicos. Isto importa muito porque, dentro desta jurisprudência, não se estabelece nenhum limite para as demandas dos pacientes. E, como eu sempre digo, SE UM PODE TODOS PODEM.
E isto agora está mais claro e seguro do que nunca. Se um paciente ou seus familiares, se um grupo ou uma associação de pacientes pode plantar e utilizar e até comercializar a maconha, livremente, no Brasil, então todos podem.
Antes mesmo desta decisão do STJ, eu já dizia aos meus pacientes, que têm o interesse em plantar, que eles têm o seu direito estabelecido desde o momento que tenham uma receita médica; É a receita do médico, prescrevendo maconha ou canabinoides, que estabelece o direito ao cultivo, independente do diagnóstico ou gravidade do caso. Todos os pacientes têm o mesmo direito ao cultivo desde o momento em que tenham a receita. E este direito fundamental vinha sendo reconhecido, cada vez mais, pelos tribunais de primeira e segunda instância. Agora, com esta decisão do STJ a jurisprudência ficou muito mais firme e o direito dos pacientes ao plantio se estabelece praticamente como inquestionável.
Traduzindo em miúdos, agora ficou ainda mais seguro para quem planta ou quer plantar maconha para seu uso pessoal no Brasil. É um direito reconhecido pelo STJ e que, portanto, não deve mais ser questionado em tribunais inferiores.
Do mesmo modo como o caminho da desobediência civil e do ataque de formigas no judiciário era o único possível nestas condições, também é fato que apenas o uso medicinal poderia ser inicialmente aceito na nossa cultura.
É curioso ver o nível de tensão que o tema provoca na imprensa em geral que tenta, de todo modo separar o uso medicinal da maconha da própria maconha. Em vários órgãos de imprensa, como já se tornou tradicional, tentam reduzir a planta a um dos seus princípios ativos, o canabidiol. A ideia que eles querem passar é que não se trata de usar a planta maconha, que seria, sabe-se lá o porquê, algo tremendamente condenável e perigoso, mas apenas uma parcela dela, à qual eles chamam de óleo de canabidiol e que seria segura.
O que eles não sabem é que a extração que se faz do óleo da cannabis é apenas uma forma de concentrar todos os seus princípios ativos, entre eles o CBD, mas também e principalmente, o THC, que é o principal e, normalmente aquele com maior concentração nas plantas.
Com isto acabaram transformar o óleo de maconha, que hoje já é largamente usado no Brasil, em Canabidiol, driblando assim o preconceito e a resistência de muitos
Tanto faz, é a mesma maconha de sempre e maconha funciona mesmo, para diversos problemas de saúde, e é segura mesmo.
Então, chegamos agora até este ponto em que o STJ acaba de reconhecer o direito ao plantio da maconha para pessoas com diferentes diagnósticos. Isso, de certo modo, para mim, dá um teto para o que se pode avançar por este caminho. O direito ao plantio para uso pessoal deve ser respeitado por todos os demais tribunais e parametrizar a postura da justiça em geral e das polícias acerca desta questão.
Ainda teremos, no entanto, muitas prisões injustas e até muitas mortes e muitas outras injustiças sendo cometidas contra as pessoas envolvidas com a erva aqui no Brasil, seja no plantio, no comércio, como no uso.
É claro que este ponto conquistado até agora deve ser ampliado de modo a chegar até a aceitação e liberalização completas do uso, do comércio e do plantio da erva no nosso país;
A irracionalidade e a violência da proibição do uso medicinal e do plantio para o uso medicinal é mais fácil de ser percebida, mas a irracionalidade e a violência da proibição em geral também deve ser demonstrada e as mudanças maiores na cultura e na legislação devem ser conquistadas sim.
Existem três motivos socialmente muito fortes para a liberação da maconha: o uso medicinal, a liberdade pessoal e a autonomia sobre o próprio corpo e a violência social provocada pela guerras às drogas.
Entre os motivos para se proibir o mais forte parece ser a questão da saúde pública, se alega que a cannabis seria um risco à saúde publica, talvez até à sociedade em geral, devido aos problemas psicológicos, de humor, de vontade e capacidade que ela poderia causar.
É muito difícil debater estas acusações e determinar com precisão exata qual o risco de saúde e social que o uso da maconha pode causar para populações humanas. Mas por qualquer padrão de avaliação, com qualquer nível de precisão, não é possível ignorar que estes riscos são menores do que aqueles impostos pelo uso do álcool, da nicotina, dos benzodiazepínicos, dos opioides e dos antipsicóticos por exemplo. Todos livres para consumo pessoal sem ou com receita médica.
Ora, quem libera o pior, como pode proibir o melhor? É óbvio que os danos à saúde pública causados pela liberação da maconha, sejam eles quais forem, são infinitamente menores do que aqueles do álcool e da nicotina. Então, também acaba ficando óbvio, ainda que mais difícil de aceitar, que a liberação completa de uso, plantio e circulação da maconha no nosso país será um benefício à saúde pública já que parcela das pessoas que hoje usam drogas mais destruutivas para a sua saúde poderão optar pelo uso de uma planta que tem alta segurança no que toca à possibilidade de agredir o seu organismo.
Teríamos muito o que falar sobre o direito à liberdade e a autonomia sobre o próprio corpo. E muito também sobre o dano social e o caráter essencialmente opressivo e destrutivo da chamada guerra às drogas. Mas vamos deixar isto para outro momento.
O fato é que mesmo o argumento mais forte que os proibicionistas têm, a defesa da saúde pública, é uma farsa no geral e, no caso da maconha, uma farsa incontestável.
Eu não posso terminar essa nota sem mencionar que as condições de momento levaram a uma proposta legislativa (PL 399/15) limitada e talvez equivocada mesmo sobre a maconha no Brasil. Creio que com a mudança do panorama político e institucional, a partir de uma derrota eleitoral do fascismo no país, vamos poder avançar verdadeiramente no mais alto plano nacional, seja na Anvisa e no governo como um todo, assim como no STF e no Congresso. Prosseguir com uma proposta de lei muito acanhada e até equivocada, então, será um erro.